Do bojo da carteira nem
sempre saem temas surpreendentes. Muitas vezes, ao contrário do que ela pensa,
são mais do que previsíveis.
Penso que já falei de
memórias. É raríssimo reler o que escrevi e tenho medo de me repetir, mas sempre
que regresso às raízes saltam as memórias para o colo, trepam peito acima e,
não sei porquê, teimam acintosamente em alcançar os olhos (só pode mesmo ser de
propósito) para que se afoguem em lágrimas. Estranhamente, as memórias nadam e sobrevivem.
Ninguém nos ensina a
guardar memórias. Instalam-se sem pedir licença. Há quem tudo faça por apagá-las.
De nada vale. Estão lá, queiramos ou não. As más e as boas. As más, contamos a
poucos e algumas ensinam-nos a crescer. As boas, desejamos que todos as tenham
iguais.
Sei bem que os filhos
terão as suas memórias mas gostava tanto que fossem meros acrescentos das
nossas… Talvez nos compreendessem melhor, quando perante uma paisagem, uma luz,
um som, um cheiro, nos vêem paralisados, de sorriso pronto, um ar pateta...
Como explicar as cores, cheiros,
sons e gestos que nos transportam até a um outro tempo, feliz ou menos feliz? Algumas
memórias ainda poderão ter remédio, para outras é demasiado tarde. Mesmo com inusitados
esforços só conseguimos partilhar algumas e muitas desapareceram na voracidade
das regulamentações enviadas com selo de Bruxelas.
Desapareceram aqui os
gestos e cheiros da minha infância. Se quisesse o seu retorno, tinha de me ver
com as regras higiénicas europeias, inodoras e incolores. Mas um dia ainda poderei
revivê-las. Como os cheiros da queijaria. Os gestos. Sentir os dedos a mergulhar
naquela massa branca tão macia extorquindo-lhe o soro e moldá-la ao cincho. O
cheiro da massa do pão. Dos gestos violentos a amassá-la, acabando numa simples
bênção de cruz rematada a frase condizente. Da vassoura de giestas a varrer o
forno, quente da carqueja. Da espera. O aprender a esperar. O cheiro do pão
quando se tira a porta do forno.
O gesto de migar as couves
para as galinhas. O chamá-las ao repasto. Os cheiros do fumeiro. Provocar os
perus. Os cheiros da adega. Os gestos rigorosos para, numa horta, tapar com a
enxada um rego no minuto exacto e dar entrada à água noutro. Os badalos e
chocalhos ao longe. Cavalgar como se fosse dona do vento.
As memórias perdidas. O tempo
exacto de regular o candeeiro a petróleo para não queimar a chaminé. O cheiro
das velas que levávamos para o quarto. O som das nossas vozes ao serão. O som das
conversas fascinantes dos tios e os seus desenhos deslumbrantes. O som do
silêncio quando, concentrados, tentávamos agradar à avó mostrando que também sabíamos
desenhar. O som das cartas da paciência da avó. O som dos seus passos subindo a
escada para ver se não tínhamos velas acesas. O som do telefone que o tio-avô
inventou para ligar as quintas entre si, em códigos Morse diferentes. Três
traços. É para nós! O gongo gigante que à falta de sino, marcava as horas de
descanso e de trabalho. O gongo pequenino de casa para chamar às refeições, que
a avó levava até à varanda. Raramente o ouvia, tão longe estava, e os atrasos
pagavam-se.
Estas e muitas mais, recuperáveis
ou perdidas, guardo-as em caixa de música que toca sem avisar.
Inesperadamente herdei
também as memórias dos nossos que cruzaram os mares, conheço os sons, cores e
cheiros sentidos pelos que aportaram em sítios onde nunca fui. Sei que os
reconheço. Sei que vou chorar na sua presença porque os sinto meus.
Leonor Martins de Carvalho
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