Estava
a escrever um texto e cometi o imperdoável erro de o voltar a pôr na carteira.
Quando, a medo mas esperançosa, voltei a lá enfiar a mão para o recuperar, saiu
outro. Previsível… Logo por azar, muito feminino.
É
linda a calçada portuguesa, pois é. Original e tudo. Very typical, dizem os turistas de fim-de-semana. Só mesmo quem não
tem de a calcorrear todos os santos dias. Claro que também gosto, da sua
beleza, por ser diferente e até pela cor. Combina com a nossa luz e sobretudo
com a de Lisboa. Ao menos temos uns passeios que de cinzentões não têm nada.
Há
sempre um “mas” à nossa espera ao virar da esquina, e este vem informar que a
calçada tem os seus pequenos senãos. O principal resulta de já não haver
calceteiros à altura. Hoje as pedras são postas com pouco cuidado, já não ficam
bem juntinhas e a calçada não é batida convenientemente, porque é preciso
despachar a obra, porque há que poupar nas horas de trabalho que são caras,
porque a empreitada tem de cumprir o prazo (o tal que nunca é cumprido na
mesma)…
Outro
grande óbice à sua perfeição é a quantidade de vezes que se abrem buracos num
passeio. Nos mesmos sítios. Quando se refaz uma calçada, mesmo se mal feita,
está linda, direitinha, os sapatos até pedem para a estrear. Nem uma semana
passou e está a empresa do gás a abrir um buraco. Aquelas obras em que para um
metro quadrado de área são precisos, no mínimo, uns quatro trabalhadores, um
para dar uso à picareta e os outros três para uma espécie de apoio moral,
amálgama de ordens, conselhos e palavrões. As suas posições relativas vão
alternando consoante o instrumento de trabalho que se segue. Ao fechar-se o
buraco, nasce a primeira lomba naquele até então bem nivelado passeio de
calçada à portuguesa.
Eis
senão quando, a empresa da água lembra-se de um cano que tem de ser substituído
precisamente no mesmo metro quadrado. Os trabalhadores não são os mesmos, mas a
história é. Vede senhores como a primeira lomba se transforma em duas.
É
preciso continuar? Um ano depois, o produto final é uma calçada à portuguesa à
moda da Serra da Estrela, com montanhas, picos e vales. Quando chove o postal
fica completo com os lagos.
Temos
ainda a originalidade de passeios com declive lateral, como nos autódromos, em
direcção à rua, perfeitos para testar a aderência das solas.
Finalmente,
quando chove, abordar uma descida com mais de 20 graus de inclinação, mesmo
nada rara em Lisboa, é suicídio. Parece que alguém concebeu um plano para
encher as urgências dos hospitais que devem estar pelas ruas da amargura, essas
que não têm passeios com calçada à portuguesa.
Perante
este verdadeiro circuito de corta-mato citadino, como é possível a uma mulher
que acabou de comprar aqueles sapatos de salto alto de sonho, ter o andar
elegante que lhe é prometido em todas as revistas femininas, se o dito salto se
enfia precisamente, em cada um dos interstícios das pedras, esvaziados de terra
com as primeiras chuvadas? Não há elegância possível em pés que a cada dois
segundos se viram lateralmente, em sentidos opostos, proporcionando uma
estranha visão de corpo retorcido na quase-queda e novamente retorcido no
retomar do equilíbrio, resultando num caminhar a soluços.
Confesso
que já caí. Humilhação completa, porque logo olhares trocistas me avaliaram sem
hesitar como “aquela que não sabe andar de saltos altos”.
Realmente
as mulheres portuguesas são extraordinárias. Caminhar de saltos altos nesta
calçada é equivalente ao trilhar de mares desconhecidos pelos navegadores. Se
organizarem o campeonato mundial aqui, ganhamos.
O
pior inimigo da mulher portuguesa não é, ao contrário do que possa parecer, o
homem português. É outra fêmea, também portuguesa: a calçada.
Leonor
Martins de Carvalho
Publicada
em 10/02/12 no Eternas Saudades do Futuro