segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Dia 3 – Da calçada portuguesa

Estava a escrever um texto e cometi o imperdoável erro de o voltar a pôr na carteira. Quando, a medo mas esperançosa, voltei a lá enfiar a mão para o recuperar, saiu outro. Previsível… Logo por azar, muito feminino.

É linda a calçada portuguesa, pois é. Original e tudo. Very typical, dizem os turistas de fim-de-semana. Só mesmo quem não tem de a calcorrear todos os santos dias. Claro que também gosto, da sua beleza, por ser diferente e até pela cor. Combina com a nossa luz e sobretudo com a de Lisboa. Ao menos temos uns passeios que de cinzentões não têm nada.

Há sempre um “mas” à nossa espera ao virar da esquina, e este vem informar que a calçada tem os seus pequenos senãos. O principal resulta de já não haver calceteiros à altura. Hoje as pedras são postas com pouco cuidado, já não ficam bem juntinhas e a calçada não é batida convenientemente, porque é preciso despachar a obra, porque há que poupar nas horas de trabalho que são caras, porque a empreitada tem de cumprir o prazo (o tal que nunca é cumprido na mesma)…

Outro grande óbice à sua perfeição é a quantidade de vezes que se abrem buracos num passeio. Nos mesmos sítios. Quando se refaz uma calçada, mesmo se mal feita, está linda, direitinha, os sapatos até pedem para a estrear. Nem uma semana passou e está a empresa do gás a abrir um buraco. Aquelas obras em que para um metro quadrado de área são precisos, no mínimo, uns quatro trabalhadores, um para dar uso à picareta e os outros três para uma espécie de apoio moral, amálgama de ordens, conselhos e palavrões. As suas posições relativas vão alternando consoante o instrumento de trabalho que se segue. Ao fechar-se o buraco, nasce a primeira lomba naquele até então bem nivelado passeio de calçada à portuguesa.

Eis senão quando, a empresa da água lembra-se de um cano que tem de ser substituído precisamente no mesmo metro quadrado. Os trabalhadores não são os mesmos, mas a história é. Vede senhores como a primeira lomba se transforma em duas.

É preciso continuar? Um ano depois, o produto final é uma calçada à portuguesa à moda da Serra da Estrela, com montanhas, picos e vales. Quando chove o postal fica completo com os lagos.

Temos ainda a originalidade de passeios com declive lateral, como nos autódromos, em direcção à rua, perfeitos para testar a aderência das solas.

Finalmente, quando chove, abordar uma descida com mais de 20 graus de inclinação, mesmo nada rara em Lisboa, é suicídio. Parece que alguém concebeu um plano para encher as urgências dos hospitais que devem estar pelas ruas da amargura, essas que não têm passeios com calçada à portuguesa.

Perante este verdadeiro circuito de corta-mato citadino, como é possível a uma mulher que acabou de comprar aqueles sapatos de salto alto de sonho, ter o andar elegante que lhe é prometido em todas as revistas femininas, se o dito salto se enfia precisamente, em cada um dos interstícios das pedras, esvaziados de terra com as primeiras chuvadas? Não há elegância possível em pés que a cada dois segundos se viram lateralmente, em sentidos opostos, proporcionando uma estranha visão de corpo retorcido na quase-queda e novamente retorcido no retomar do equilíbrio, resultando num caminhar a soluços.

Confesso que já caí. Humilhação completa, porque logo olhares trocistas me avaliaram sem hesitar como “aquela que não sabe andar de saltos altos”.

Realmente as mulheres portuguesas são extraordinárias. Caminhar de saltos altos nesta calçada é equivalente ao trilhar de mares desconhecidos pelos navegadores. Se organizarem o campeonato mundial aqui, ganhamos.

O pior inimigo da mulher portuguesa não é, ao contrário do que possa parecer, o homem português. É outra fêmea, também portuguesa: a calçada.

Leonor Martins de Carvalho

Publicada em 10/02/12 no Eternas Saudades do Futuro