sexta-feira, 14 de abril de 2017

Dia 105 - Da eternidade das mães

É assim que as mães são, eternas. No céu e na terra.

Claro que alguns nos avisam que as mães não são eternas. O conselho é querido. Quer-se que aproveitemos ao máximo a sua presença nas nossas vidas porque em novos achamos mesmo que vão estar connosco para sempre. Quando pela primeira vez nos apercebemos de que pode não ser assim, perdemos de repente o pé, mas começamos a nadar ignorando os sinais.

Contudo, estão enganados. As mães são mesmo eternas. São-no lá, na sua nova vida, mas também cá, na nossa. Os seus objectos, as suas criações, os seus textos, as nossas memórias, as nossas palavras e até os nossos gestos são a eternidade das mães. E são já continuidade essas memórias, palavras e gestos. São também os das suas próprias mães. Que os têm das suas.

O que a minha mãe foi e viveu não cabe num livro. Talvez numa colecção de trinta volumes... Deve ser assim com todas as mães. Não cabem em livros. É estranho (ou não!) caberem em memórias, mas não em livros.

A mãe, 1,59m de pura grandeza, fez coisas gigantes e coisas minúsculas, tão grandes como as outras. Tantas e tão variadas que impressionam.

Como a minuciosa preparação de qualquer conferência ou artigo: sobre a Edith Stein leu tudo o que havia, conhecia os Nouveaux Philosophes melhor que eles próprios, duvido que tivesse falhado alguma leitura dos anarquistas, Hildegard Von Bingen não tinha segredos e por aí adiante...
Como o gigantesco trabalho de procurar uma gravura de Santa Marta, quase em desespero encontrar uma do tamanho de uma impressão digital, emoldurá-la e pôr a minúscula surpresa no quarto da sua neta Marta no Alentejo.
Como resolver tirar os cursos de Filosofia e de Teologia depois dos cinquenta anos.
Como fazer vestidos para as bonecas e tricotar meias.
Como ter um programa sobre História de Arte na televisão que dava os primeiros passos (gostava tanto de poder vê-lo...) e durante dois anos um programa na Rádio Renascença sobre crianças.
Como ensinar-me a ler usando recortes de revistas colados em folhas num dossiê e rir-se quando esta devoradora de letras de cinco anos perguntava o que era um final emocionante.
Como criar uma espécie de banda desenhada relatando as eleições de Portalegre de 1949 com as listas da oposição e noutra uma visita a Inglaterra com a irmã.
Como fazer um caderno de palavras cruzadas inventadas só para mim.
Como desenhar de uma forma maravilhosamente simples e bela.
Como escrever uma história a meias com os três filhos, num Verão em São Martinho do Porto, inspirada no Eça de Queiroz e no Ramalho Ortigão.
Como ter escrito para jornais e revistas, como a Ao Largo, o Diário de Notícias, o Diário Ilustrado...
Como inventar as aventuras da História Qualquer (Ó mãe conte uma história! Que história? Uma história qualquer!) que duravam exactamente o tempo de viagem ao domingo, entre a casa da avó no Estoril e a nossa casa em Lisboa.
Como colaborar na revista do Ministério da Cultura, no tempo do David Mourão-Ferreira e do Lima de Freitas, numa das quais entrevistou a Sarah Afonso.
Como organizar caças ao tesouro para encontrarmos os ovos da Páscoa, com pistas que eram verdadeiras charadas.
Como ter sido copywriter numa agência de publicidade onde criou, por exemplo, um slogan para a SEAT de que já não me lembro, mas sei que foi um sucesso na altura.

Paro. Senão temos os tais trinta volumes.

Lia tudo, mesmo tudo, desde poesia a política, teologia, romances, filosofia e até sobre física. Uma sede imensa de conhecimento, uma sede imensa do mundo, alicerçada numa profunda fé. Desde os quinze anos na JEC que sempre foi a mais dedicada das leigas e a sua contribuição para a Igreja deve dar metade dos trinta volumes.

Adorava a família, os irmãos, os sobrinhos e era uma espécie de cofre aberto das memórias familiares, uma óptima contadora de histórias fazendo-nos querer saber tudo e perpetuar tradições.

Mas é claro que tivemos bulhas. Sou uma criatura impossível de aturar. Mesmo assim aguentou-me e passei a minha adolescência a segui-la para todo o lado quando andava na política, no PPM. Era o meu ídolo e o dos meus irmãos. Procurávamos os seus sábios conselhos e opiniões sobre tudo, desde o que vestir até à última novidade política.

Desculpe mãe, custa-me escrever agora, sei que está uma trapalhada, mas também sei que é uma necessidade absoluta. Minha, egoísta, mas é. Pode ser que um dia consiga escrever coisa mais decente, mas sei que nunca vou estar à altura. Tento, mãe, mas não consigo.

Faz-me falta para dar beijinhos e festinhas, mas ao mesmo tempo é eterna no seu exemplo, na sua coragem, na sua integridade, na sua inteligência e está aqui comigo, connosco. É eterna. Como todas as mães.

Da sua “taramela”, “gata arisca” e “quero tudo já”.

Leonor

domingo, 16 de novembro de 2014

DIA 4 – Da cantina

Quando se diz que uma carteira de senhora não tem fundo, é porque cabe lá tudo, sendo exactamente esse o problema. A verdade é que todas têm fundo, mesmo esta, mas não há maneira de conseguir encontrar o tal texto que tinha começado. O truque é não insistir numa procura específica. Um dia o acaso trará à tona o que quero. Assim, surgiu qualquer coisa com uma pitada de crise.

De há uns tempos a esta parte que vimos ouvindo dia sim, dia não, sermões admoestadores de um senhor Silva e de muitas outras réplicas do senhor Silva, economistas na sua maioria, sobre como os portugueses têm vivido acima das suas possibilidades.

Confesso que não me tinha apercebido desse facto e dediquei-me de coração a elaborar um estudo aprofundado sobre o assunto na parte que me diz respeito.

Os senhores Silvas até parecem videntes e deviam concorrer com os inúmeros professores de nomes vagamente africanos que prometem mil e uma salvações em minúsculos papelinhos que distribuem à porta do metropolitano. Então não é que estava mesmo a viver acima das minhas possibilidades? Esquadrinhando despesa a despesa e saltando convenientemente a linha que continha a palavra tabaco e que até pusera em pé-de-página com letra de apólice de seguro, apercebi-me que, de facto, uma determinada área da minha vida saltava à vista desarmada, em letras grandes e florescentes, como problemática: o almoço.

Almoçar fora todos os dias gastando uma média de 8 € era sem dúvida viver acima das minhas possibilidades, e como não queria mais sentir-me incluída nos tais sermões, mudei radicalmente a minha vida, como aquelas mentes que se iluminam pelos discursos inflamados de homens vulgares erigidos a profetas glorificando os seus livros de auto-ajuda agora no topo das vendas das livrarias.

Sendo funcionária pública, retomei o antigo hábito de quando a idade era boa por ser pouca mas rimava com dificuldade: ir à cantina. Nós dizemos ir à cantina, mas na verdade, o nome oficial é refeitório. Palavra comprida demais para frases que se querem curtas no aperto dos horários e cantina até lembra escola.

Aqui perto há dois lugares à escolha, um mais “chique” do que o outro, mas o preço por uma refeição completa é o mesmo, menos de metade do que pagava apenas por um prato!

Um deles é enorme, provavelmente antiga garagem transformada em cantina. Permite um almoço mais sossegado e tem uma outra vantagem: as mesas são para quatro pessoas e as cadeiras, surpresa das surpresas, são uma espécie de baloiços. Não sei descrever à moda de manual técnico, mas em termos simples, são giratórias. Como se fosse um parque infantil à mesa do almoço, uma espécie de presente para os mais velhos, com um certo sabor a brincadeira proibida, lembrando os dias em que seus pais lhes chamavam a atenção “está quieto com a cadeira!”.

Aqui são mais os reformados que vêm, alguns desde muito cedo, sentando-se na sala de entrada à espera de serem os primeiros da fila e adoram ter motivos para chamar a atenção de quem acham que lhes está a passar à frente.

Na cantina chique, mais pequena, as mesas são corridas, há mais gente e, embora também seja frequentada por velhinhos, os mais novos estão aqui em grande número, pelo que o barulho é a condizer.

Antes de ordeira e pacientemente ir para a fila do self-service, compram-se as refeições em máquinas muito evoluídas, com ecrã táctil e uma voz de senhora num metálico irritante a dar ordens: insira o seu cartão, não retire o seu cartão, efectue o pagamento, retire o cartão, retire o troco, retire o recibo. Na cantina grande, as máquinas até têm arrumador. Um senhor que ajuda quem se atrapalha com a máquina diabólica esperando que lhe caia em sorte ou bondade uma moeda.

As funcionárias adoram ser cúmplices e sugerem o que devemos comer com acenos de cabeça, um piscar de olhos ou uma deixa apropriada.

Há os velhinhos que vêm em grupo, normalmente mulheres, antigas professoras aposto, muito bem arranjadas, às vezes até de casacos de peles e maquilhadas, sobretudo muito conversadeiras. Há os que vêm sozinhos e descobrem os outros, e os que vêm sozinhos e não querem mesmo ser descobertos.

Os que vêm de bengala ou canadianas são ajudados pelas funcionárias que lhes levam o tabuleiro até á mesa.

Há quem ache que tem aquele lugar reservado e se sente no lugar ao lado refilando entre dentes o tempo todo, em tentativa de reconquista do lugar adorado pela força da indignação expressa em palavras sussurradas.

Há, descobri hoje quando um senhor desmaiou, muita solidariedade e um conhecimento mútuo mas calado.

A cantina parece um outro mundo, paralelo, com passagem secreta atrás de portas discretas, mas é o nosso mundo. O meu e o vosso.

Deprimente? Nem tanto. É a vida.

Leonor Martins de Carvalho

Publicada em 17/02/12 no


domingo, 9 de novembro de 2014

Dia 104 – Do asco

Bem tentou a carteira impedir-me por todos os meios de escrever esta crónica. Usou de argumentação científica, literária, abusou de golpes baixos, enfim, o costume. Que já todos escreveram sobre o mesmo, que é repetitivo, que nunca terás a força de um verdadeiro escritor, que não conseguirás atingir as almas.

Não sei. Não quero saber. Sai-me das entranhas, esta. Das más. Aquelas que nos viram as tripas. Que nos nauseiam e nos tiram o sono. A alguns, claro, e tenho a pouca sorte de ser um deles. Deixei de ver televisão, mas sempre me chegam notícias pela Internet e sinto asco, asco e mais asco. As náuseas que não tive na gravidez. Deve ser castigo.

Há anos que vemos, lemos e sabemos das promíscuas vizinhanças, ou melhor, da partilha de cama e mesa (com roupa lavada) entre poderes económicos e políticos e das amancebações (não existe a palavra, paciência, inventei) com empresas de advogados. Sem pudores nem remorsos.

Tudo tem um preço e cada vez mais baixo. Não existe país, não existe Nação, não existe Língua, existe uma oportunidade de negócio. A prostituição de uma Pátria. Vendem-se os pais, os avós, a língua, a terra, o património, a História a troco de um passaporte, um prato de lentilhas, um honoris causa, uma condecoração.

Honras a quem traiu, vendeu, sabujou, calou. Calúnias a quem resiste. Chegamos a pensar que estamos sós, que estamos doidos, apontam-nos como ultrapassados por não percebermos a utilidade (traduza-se por dinheiro nos bolsos) da coisa. Estranham não cedermos ao marketing bem delineado da pertença a um qualquer suposto bem maior.

Roubar, mentir, vender-se, vender outrem, vender património ao deus-dará, delapidá-lo, descaracterizá-lo, cometer genocídio de todos quantos vivem fora do centro do poder, passaram a ser os mandamentos deste mundo a que não quero pertencer.

O asco não se resume a este canto. É vírus bem mais potente que qualquer Ébola. Assistimos a igual ou parecido (embora pareça sempre pior aqui, porque nem a justiça funciona) por todo o Mundo.

A guerra, a corrupção, a violência, a violência gratuita, os negócios com a guerra, os negócios com as riquezas das Nações dos outros, as perseguições, os abjectos usos de crianças nas podridões de sociedades sem consciência.

Passei a vida a dizer à filha “com o mal dos outros posso eu bem”, ou “se X se atirasse a um poço também se atirava?”… a propósito do eterno argumento infantil de que os outros também fazem, ou podem, ou fosse o que fosse. Mantenho o argumento. Gosto de dormir tranquila. Infelizmente, dormir tranquilo, para muitos, é dormir abraçadinho à ganância e tomar o pequeno-almoço com ela, porque pagou.

Assusta. Conseguimos antever um futuro, não o que desejámos, mas o imposto por obscuros tempos. Uma coutada de alguém. Em rigor, negamos, mas até já somos.

Pensei em fugir. Ir para outro canto, bem longe. Mas este canto é também meu, foi dos meus, herdei deles uma visão muito própria do que somos. Porque hei-de fugir? Porque não ficar e resistir? Porque não acreditar que somos mais do que marionetas?

O melhor comprimido para a náusea provocada pelo asco são os pequenos momentos, no dia-a-dia, que nos fazem acreditar haver ainda gente boa e sã, apesar da visão diariamente imposta de inúmeras montanhas que nos atrofiam e nos parecem inultrapassáveis.

Nem que seja por um. Portugal tem oitocentos e setenta e um anos. Só precisa de quem o continue a amar. Um amor vindo das entranhas. Das boas.


Leonor Martins de Carvalho

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Dia 3 – Da calçada portuguesa

Estava a escrever um texto e cometi o imperdoável erro de o voltar a pôr na carteira. Quando, a medo mas esperançosa, voltei a lá enfiar a mão para o recuperar, saiu outro. Previsível… Logo por azar, muito feminino.

É linda a calçada portuguesa, pois é. Original e tudo. Very typical, dizem os turistas de fim-de-semana. Só mesmo quem não tem de a calcorrear todos os santos dias. Claro que também gosto, da sua beleza, por ser diferente e até pela cor. Combina com a nossa luz e sobretudo com a de Lisboa. Ao menos temos uns passeios que de cinzentões não têm nada.

Há sempre um “mas” à nossa espera ao virar da esquina, e este vem informar que a calçada tem os seus pequenos senãos. O principal resulta de já não haver calceteiros à altura. Hoje as pedras são postas com pouco cuidado, já não ficam bem juntinhas e a calçada não é batida convenientemente, porque é preciso despachar a obra, porque há que poupar nas horas de trabalho que são caras, porque a empreitada tem de cumprir o prazo (o tal que nunca é cumprido na mesma)…

Outro grande óbice à sua perfeição é a quantidade de vezes que se abrem buracos num passeio. Nos mesmos sítios. Quando se refaz uma calçada, mesmo se mal feita, está linda, direitinha, os sapatos até pedem para a estrear. Nem uma semana passou e está a empresa do gás a abrir um buraco. Aquelas obras em que para um metro quadrado de área são precisos, no mínimo, uns quatro trabalhadores, um para dar uso à picareta e os outros três para uma espécie de apoio moral, amálgama de ordens, conselhos e palavrões. As suas posições relativas vão alternando consoante o instrumento de trabalho que se segue. Ao fechar-se o buraco, nasce a primeira lomba naquele até então bem nivelado passeio de calçada à portuguesa.

Eis senão quando, a empresa da água lembra-se de um cano que tem de ser substituído precisamente no mesmo metro quadrado. Os trabalhadores não são os mesmos, mas a história é. Vede senhores como a primeira lomba se transforma em duas.

É preciso continuar? Um ano depois, o produto final é uma calçada à portuguesa à moda da Serra da Estrela, com montanhas, picos e vales. Quando chove o postal fica completo com os lagos.

Temos ainda a originalidade de passeios com declive lateral, como nos autódromos, em direcção à rua, perfeitos para testar a aderência das solas.

Finalmente, quando chove, abordar uma descida com mais de 20 graus de inclinação, mesmo nada rara em Lisboa, é suicídio. Parece que alguém concebeu um plano para encher as urgências dos hospitais que devem estar pelas ruas da amargura, essas que não têm passeios com calçada à portuguesa.

Perante este verdadeiro circuito de corta-mato citadino, como é possível a uma mulher que acabou de comprar aqueles sapatos de salto alto de sonho, ter o andar elegante que lhe é prometido em todas as revistas femininas, se o dito salto se enfia precisamente, em cada um dos interstícios das pedras, esvaziados de terra com as primeiras chuvadas? Não há elegância possível em pés que a cada dois segundos se viram lateralmente, em sentidos opostos, proporcionando uma estranha visão de corpo retorcido na quase-queda e novamente retorcido no retomar do equilíbrio, resultando num caminhar a soluços.

Confesso que já caí. Humilhação completa, porque logo olhares trocistas me avaliaram sem hesitar como “aquela que não sabe andar de saltos altos”.

Realmente as mulheres portuguesas são extraordinárias. Caminhar de saltos altos nesta calçada é equivalente ao trilhar de mares desconhecidos pelos navegadores. Se organizarem o campeonato mundial aqui, ganhamos.

O pior inimigo da mulher portuguesa não é, ao contrário do que possa parecer, o homem português. É outra fêmea, também portuguesa: a calçada.

Leonor Martins de Carvalho

Publicada em 10/02/12 no Eternas Saudades do Futuro

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Dia 103 – De memórias II

Do bojo da carteira nem sempre saem temas surpreendentes. Muitas vezes, ao contrário do que ela pensa, são mais do que previsíveis.

Penso que já falei de memórias. É raríssimo reler o que escrevi e tenho medo de me repetir, mas sempre que regresso às raízes saltam as memórias para o colo, trepam peito acima e, não sei porquê, teimam acintosamente em alcançar os olhos (só pode mesmo ser de propósito) para que se afoguem em lágrimas. Estranhamente, as memórias nadam e sobrevivem.

Ninguém nos ensina a guardar memórias. Instalam-se sem pedir licença. Há quem tudo faça por apagá-las. De nada vale. Estão lá, queiramos ou não. As más e as boas. As más, contamos a poucos e algumas ensinam-nos a crescer. As boas, desejamos que todos as tenham iguais.

Sei bem que os filhos terão as suas memórias mas gostava tanto que fossem meros acrescentos das nossas… Talvez nos compreendessem melhor, quando perante uma paisagem, uma luz, um som, um cheiro, nos vêem paralisados, de sorriso pronto, um ar pateta...

Como explicar as cores, cheiros, sons e gestos que nos transportam até a um outro tempo, feliz ou menos feliz? Algumas memórias ainda poderão ter remédio, para outras é demasiado tarde. Mesmo com inusitados esforços só conseguimos partilhar algumas e muitas desapareceram na voracidade das regulamentações enviadas com selo de Bruxelas.

Desapareceram aqui os gestos e cheiros da minha infância. Se quisesse o seu retorno, tinha de me ver com as regras higiénicas europeias, inodoras e incolores. Mas um dia ainda poderei revivê-las. Como os cheiros da queijaria. Os gestos. Sentir os dedos a mergulhar naquela massa branca tão macia extorquindo-lhe o soro e moldá-la ao cincho. O cheiro da massa do pão. Dos gestos violentos a amassá-la, acabando numa simples bênção de cruz rematada a frase condizente. Da vassoura de giestas a varrer o forno, quente da carqueja. Da espera. O aprender a esperar. O cheiro do pão quando se tira a porta do forno.

O gesto de migar as couves para as galinhas. O chamá-las ao repasto. Os cheiros do fumeiro. Provocar os perus. Os cheiros da adega. Os gestos rigorosos para, numa horta, tapar com a enxada um rego no minuto exacto e dar entrada à água noutro. Os badalos e chocalhos ao longe. Cavalgar como se fosse dona do vento.

As memórias perdidas. O tempo exacto de regular o candeeiro a petróleo para não queimar a chaminé. O cheiro das velas que levávamos para o quarto. O som das nossas vozes ao serão. O som das conversas fascinantes dos tios e os seus desenhos deslumbrantes. O som do silêncio quando, concentrados, tentávamos agradar à avó mostrando que também sabíamos desenhar. O som das cartas da paciência da avó. O som dos seus passos subindo a escada para ver se não tínhamos velas acesas. O som do telefone que o tio-avô inventou para ligar as quintas entre si, em códigos Morse diferentes. Três traços. É para nós! O gongo gigante que à falta de sino, marcava as horas de descanso e de trabalho. O gongo pequenino de casa para chamar às refeições, que a avó levava até à varanda. Raramente o ouvia, tão longe estava, e os atrasos pagavam-se.

Estas e muitas mais, recuperáveis ou perdidas, guardo-as em caixa de música que toca sem avisar.

Inesperadamente herdei também as memórias dos nossos que cruzaram os mares, conheço os sons, cores e cheiros sentidos pelos que aportaram em sítios onde nunca fui. Sei que os reconheço. Sei que vou chorar na sua presença porque os sinto meus.


Leonor Martins de Carvalho

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Dia 2 - Dos políticos

Até podia aproveitar a maré das efemérides desta semana para uma alfinetada monárquica. Contudo, tal como os nossos antepassados aprenderam a navegar à bolina para chegar a bom porto, decidi ir contra o vento. Afinal nem tinha outra hipótese, pois nesta carteira, gémea de todas as outras, o aleatório é quase comandante. Nunca se encontra o que se quer e sai sempre o inesperado.

Parafraseando os saudosos Monty Python, passemos então a algo completamente diferente: “os políticos”. Queixamo-nos todos os dias dos políticos em geral e de muitos em particular. Que fazer? Haverá solução? Será que ligeiras alterações à sua carreira fariam alguma diferença? É mesmo o que proponho, ligeiríssimas alterações.

Todos os aspirantes a uma carreira na política, seriam obrigados a passar por uma série de provas. À moda dos Jogos sem Fronteiras, lembram-se? Para que o povo conhecesse bem os futuros políticos, as provas seriam televisionadas e apresentadas pelo Eládio Clímaco, que tem a experiência requerida.

Deixo aqui dois singelos exemplos:

1. Viver um mês numa aldeia isolada.
Pode ser em Trás-os-Montes, Beiras ou Alentejo, tanto faz.
A preferência seria por uma aldeia num vale recôndito, sem rede de telemóvel nem de Internet, nem sequer acesso à novíssima TDT. Ficariam a 20 km de outra aldeia e a 50 km da vila mais próxima, através de belíssimas estradas com curvas a cada 5 metros e com espaço suficiente para passar um Mini.
Os candidatos receberiam a reforma mínima, não tinham direito a automóvel e teriam de fazer a vida de uma família normal: ir para o trabalho, às compras, ao médico, à escola, à Câmara, ao tribunal (antes ainda do novo mapa judiciário).
O júri era constituído por habitantes locais com fama de incorruptíveis, que se encarregavam de verificar se não havia batotas.

2. Viver em ambiente urbano sem automóvel, num qualquer subúrbio de Lisboa.
Pode ser Seixal, Stª Iria de Azóia ou Algueirão, tanto faz.
Nesta prova, com o pecúlio aumentado para o salário mínimo, teriam de descobrir que tipo de passe comprar, as ligações e transbordos necessários, e depois ir para e voltar do trabalho à hora de ponta, bem como efectuar percursos em horário nocturno e em fim-de-semana.
Também aqui se poderia recorrer a habitantes locais como jurados, mas um concurso para voluntários controladores não era má ideia, desde que fossem revistados antes, para evitar vinganças privadas.

Os sobreviventes a estas provas e mais algumas outras, elaborariam a final um relatório, que, para testar a sua capacidade de síntese, não poderia exceder uma folha A4, com as suas impressões, pontos fortes e fracos e currículo completo, anexando carta de motivação, sobre o tema “Ser político é servir”. Esta seria a base da entrevista, onde seriam testados ao limite, ligados a um polígrafo.

Talvez assim os futuros políticos consigam perceber a diferença entre o mapa no gabinete e a vida real. Talvez assim, cada vez que tomam decisões, se lembrem das pessoas. Talvez assim conheçam o povo, o ouçam, nas suas queixas e nas suas histórias, e aprendam o que é solidariedade.

Acredito que as provas tornariam os futuros políticos melhores pessoas e por isso melhores políticos. Caso contrário, seriam casos perdidos, que deviam ser banidos de cargos públicos ou exportados para melhorar a balança comercial. Não muito, porque o seu valor é baixo.

Leonor Martins de Carvalho

Publicada a 03/02/2012 no Eternas Saudades do Futuro


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Dia 102 - Da vingança das Letras

A carteira julga-se cientista no meio de um doutoramento, esquecendo-se convenientemente de ainda não ter acabado o liceu. Impinge-nos, pois, a sua nova teoria: a vingança das letras. Das letras más.

Parece que é uma maldição por fases. Basta olhar para os jornais para ver que agora estamos na fase da letra B.

BPN, BPP, BES, BdP, BCE, ocasionalmente intercalados com Benfica ou Bombardeamentos. Pelos vistos, Ébola também conta, bem como Avião e Governo, por causa de alguns sotaques. Com estas excepções, não sei se a tese é lá muito sólida, mas a carteira teima.

A dita série amaldiçoada não segue qualquer ordem, muito menos a alfabética. Não começou no A nem se lhe segue o C. É uma série caótica, sem qualquer possibilidade de transcrição em fórmulas matemáticas, gerada aleatoriamente nos casos terríveis que dominam o mundo, um mundo, diz ela, subjugado pelas letras.

Perguntei se alguma vez havia uma qualquer influência positiva nessa tal série vingativa e se palavras como Bem ou Belo poderiam entrar na sua composição. Explicou que fazem parte da maldição mas, porque são sempre minoritárias, não conseguem desviar a rota.

A ser assim, e pensando só em Portugal, posso juntar-lhe ainda Barbárie, Bestas, Burlas e Vergonha (a pensar nos tais sotaques).

Não vamos sair do Buraco tão cedo, por isso o reino dos Bês ainda nos vai acompanhar. Vou pedir que me avise quando chegar a maldição do G, porque quero muito falar de ganância, ou do C, de compadrio e corrupção.

Pode ser também que um dia chegue a vez da vingança das letras Boas.


Leonor Martins de Carvalho