sexta-feira, 14 de abril de 2017

Dia 105 - Da eternidade das mães

É assim que as mães são, eternas. No céu e na terra.

Claro que alguns nos avisam que as mães não são eternas. O conselho é querido. Quer-se que aproveitemos ao máximo a sua presença nas nossas vidas porque em novos achamos mesmo que vão estar connosco para sempre. Quando pela primeira vez nos apercebemos de que pode não ser assim, perdemos de repente o pé, mas começamos a nadar ignorando os sinais.

Contudo, estão enganados. As mães são mesmo eternas. São-no lá, na sua nova vida, mas também cá, na nossa. Os seus objectos, as suas criações, os seus textos, as nossas memórias, as nossas palavras e até os nossos gestos são a eternidade das mães. E são já continuidade essas memórias, palavras e gestos. São também os das suas próprias mães. Que os têm das suas.

O que a minha mãe foi e viveu não cabe num livro. Talvez numa colecção de trinta volumes... Deve ser assim com todas as mães. Não cabem em livros. É estranho (ou não!) caberem em memórias, mas não em livros.

A mãe, 1,59m de pura grandeza, fez coisas gigantes e coisas minúsculas, tão grandes como as outras. Tantas e tão variadas que impressionam.

Como a minuciosa preparação de qualquer conferência ou artigo: sobre a Edith Stein leu tudo o que havia, conhecia os Nouveaux Philosophes melhor que eles próprios, duvido que tivesse falhado alguma leitura dos anarquistas, Hildegard Von Bingen não tinha segredos e por aí adiante...
Como o gigantesco trabalho de procurar uma gravura de Santa Marta, quase em desespero encontrar uma do tamanho de uma impressão digital, emoldurá-la e pôr a minúscula surpresa no quarto da sua neta Marta no Alentejo.
Como resolver tirar os cursos de Filosofia e de Teologia depois dos cinquenta anos.
Como fazer vestidos para as bonecas e tricotar meias.
Como ter um programa sobre História de Arte na televisão que dava os primeiros passos (gostava tanto de poder vê-lo...) e durante dois anos um programa na Rádio Renascença sobre crianças.
Como ensinar-me a ler usando recortes de revistas colados em folhas num dossiê e rir-se quando esta devoradora de letras de cinco anos perguntava o que era um final emocionante.
Como criar uma espécie de banda desenhada relatando as eleições de Portalegre de 1949 com as listas da oposição e noutra uma visita a Inglaterra com a irmã.
Como fazer um caderno de palavras cruzadas inventadas só para mim.
Como desenhar de uma forma maravilhosamente simples e bela.
Como escrever uma história a meias com os três filhos, num Verão em São Martinho do Porto, inspirada no Eça de Queiroz e no Ramalho Ortigão.
Como ter escrito para jornais e revistas, como a Ao Largo, o Diário de Notícias, o Diário Ilustrado...
Como inventar as aventuras da História Qualquer (Ó mãe conte uma história! Que história? Uma história qualquer!) que duravam exactamente o tempo de viagem ao domingo, entre a casa da avó no Estoril e a nossa casa em Lisboa.
Como colaborar na revista do Ministério da Cultura, no tempo do David Mourão-Ferreira e do Lima de Freitas, numa das quais entrevistou a Sarah Afonso.
Como organizar caças ao tesouro para encontrarmos os ovos da Páscoa, com pistas que eram verdadeiras charadas.
Como ter sido copywriter numa agência de publicidade onde criou, por exemplo, um slogan para a SEAT de que já não me lembro, mas sei que foi um sucesso na altura.

Paro. Senão temos os tais trinta volumes.

Lia tudo, mesmo tudo, desde poesia a política, teologia, romances, filosofia e até sobre física. Uma sede imensa de conhecimento, uma sede imensa do mundo, alicerçada numa profunda fé. Desde os quinze anos na JEC que sempre foi a mais dedicada das leigas e a sua contribuição para a Igreja deve dar metade dos trinta volumes.

Adorava a família, os irmãos, os sobrinhos e era uma espécie de cofre aberto das memórias familiares, uma óptima contadora de histórias fazendo-nos querer saber tudo e perpetuar tradições.

Mas é claro que tivemos bulhas. Sou uma criatura impossível de aturar. Mesmo assim aguentou-me e passei a minha adolescência a segui-la para todo o lado quando andava na política, no PPM. Era o meu ídolo e o dos meus irmãos. Procurávamos os seus sábios conselhos e opiniões sobre tudo, desde o que vestir até à última novidade política.

Desculpe mãe, custa-me escrever agora, sei que está uma trapalhada, mas também sei que é uma necessidade absoluta. Minha, egoísta, mas é. Pode ser que um dia consiga escrever coisa mais decente, mas sei que nunca vou estar à altura. Tento, mãe, mas não consigo.

Faz-me falta para dar beijinhos e festinhas, mas ao mesmo tempo é eterna no seu exemplo, na sua coragem, na sua integridade, na sua inteligência e está aqui comigo, connosco. É eterna. Como todas as mães.

Da sua “taramela”, “gata arisca” e “quero tudo já”.

Leonor