Claro que alguns nos avisam que
as mães não são eternas. O conselho é querido. Quer-se que aproveitemos ao
máximo a sua presença nas nossas vidas porque em novos achamos mesmo que vão
estar connosco para sempre. Quando pela primeira vez nos apercebemos de que
pode não ser assim, perdemos de repente o pé, mas começamos a nadar ignorando
os sinais.
Contudo, estão enganados. As mães
são mesmo eternas. São-no lá, na sua nova vida, mas também cá, na nossa. Os seus
objectos, as suas criações, os seus textos, as nossas memórias, as nossas palavras
e até os nossos gestos são a eternidade das mães. E são já continuidade essas
memórias, palavras e gestos. São também os das suas próprias mães. Que os têm
das suas.
O que a minha mãe foi e viveu não
cabe num livro. Talvez numa colecção de trinta volumes... Deve ser assim com
todas as mães. Não cabem em livros. É estranho (ou não!) caberem em memórias,
mas não em livros.
A mãe, 1,59m de pura grandeza, fez
coisas gigantes e coisas minúsculas, tão grandes como as outras. Tantas e tão
variadas que impressionam.
Como a minuciosa preparação de
qualquer conferência ou artigo: sobre a Edith Stein leu tudo o que havia, conhecia
os Nouveaux Philosophes melhor que
eles próprios, duvido que tivesse falhado alguma leitura dos anarquistas,
Hildegard Von Bingen não tinha segredos e por aí adiante...
Como o gigantesco trabalho de
procurar uma gravura de Santa Marta, quase em desespero encontrar uma do
tamanho de uma impressão digital, emoldurá-la e pôr a minúscula surpresa no
quarto da sua neta Marta no Alentejo.
Como resolver tirar os cursos de Filosofia
e de Teologia depois dos cinquenta anos.
Como fazer vestidos para as
bonecas e tricotar meias.
Como ter um programa sobre
História de Arte na televisão que dava os primeiros passos (gostava tanto de
poder vê-lo...) e durante dois anos um programa na Rádio Renascença sobre
crianças.
Como ensinar-me a ler usando
recortes de revistas colados em folhas num dossiê e rir-se quando esta
devoradora de letras de cinco anos perguntava o que era um final emocionante.
Como criar uma espécie de banda
desenhada relatando as eleições de Portalegre de 1949 com as listas da oposição
e noutra uma visita a Inglaterra com a irmã.
Como fazer um caderno de palavras
cruzadas inventadas só para mim.
Como desenhar de uma forma maravilhosamente
simples e bela.
Como escrever uma história a
meias com os três filhos, num Verão em São Martinho do Porto, inspirada no Eça de
Queiroz e no Ramalho Ortigão.
Como ter escrito para jornais e
revistas, como a Ao Largo, o Diário de Notícias, o Diário Ilustrado...
Como inventar as aventuras da
História Qualquer (Ó mãe conte uma história! Que história? Uma história
qualquer!) que duravam exactamente o tempo de viagem ao domingo, entre a casa
da avó no Estoril e a nossa casa em Lisboa.
Como colaborar na revista do
Ministério da Cultura, no tempo do David Mourão-Ferreira e do Lima de Freitas,
numa das quais entrevistou a Sarah Afonso.
Como organizar caças ao tesouro
para encontrarmos os ovos da Páscoa, com pistas que eram verdadeiras charadas.
Como ter sido copywriter numa agência de publicidade
onde criou, por exemplo, um slogan para a SEAT de que já não me lembro, mas sei
que foi um sucesso na altura.
Paro. Senão temos os tais trinta
volumes.
Lia tudo, mesmo tudo, desde poesia
a política, teologia, romances, filosofia e até sobre física. Uma sede imensa
de conhecimento, uma sede imensa do mundo, alicerçada numa profunda fé. Desde
os quinze anos na JEC que sempre foi a mais dedicada das leigas e a sua
contribuição para a Igreja deve dar metade dos trinta volumes.
Adorava a família, os irmãos, os
sobrinhos e era uma espécie de cofre aberto das memórias familiares, uma óptima
contadora de histórias fazendo-nos querer saber tudo e perpetuar tradições.
Mas é claro que tivemos bulhas.
Sou uma criatura impossível de aturar. Mesmo assim aguentou-me e passei a minha
adolescência a segui-la para todo o lado quando andava na política, no PPM. Era
o meu ídolo e o dos meus irmãos. Procurávamos os seus sábios conselhos e
opiniões sobre tudo, desde o que vestir até à última novidade política.
Desculpe mãe, custa-me escrever
agora, sei que está uma trapalhada, mas também sei que é uma necessidade
absoluta. Minha, egoísta, mas é. Pode ser que um dia consiga escrever coisa
mais decente, mas sei que nunca vou estar à altura. Tento, mãe, mas não
consigo.
Faz-me falta para dar beijinhos e
festinhas, mas ao mesmo tempo é eterna no seu exemplo, na sua coragem, na sua
integridade, na sua inteligência e está aqui comigo, connosco. É eterna. Como
todas as mães.
Da sua “taramela”, “gata arisca”
e “quero tudo já”.
Leonor
Leonor