Quando
se diz que uma carteira de senhora não tem fundo, é porque cabe lá tudo, sendo
exactamente esse o problema. A verdade é que todas têm fundo, mesmo esta, mas
não há maneira de conseguir encontrar o tal texto que tinha começado. O truque
é não insistir numa procura específica. Um dia o acaso trará à tona o que
quero. Assim, surgiu qualquer coisa com uma pitada de crise.
De
há uns tempos a esta parte que vimos ouvindo dia sim, dia não, sermões
admoestadores de um senhor Silva e de muitas outras réplicas do senhor Silva,
economistas na sua maioria, sobre como os portugueses têm vivido acima das suas
possibilidades.
Confesso
que não me tinha apercebido desse facto e dediquei-me de coração a elaborar um
estudo aprofundado sobre o assunto na parte que me diz respeito.
Os
senhores Silvas até parecem videntes e deviam concorrer com os inúmeros
professores de nomes vagamente africanos que prometem mil e uma salvações em
minúsculos papelinhos que distribuem à porta do metropolitano. Então não é que
estava mesmo a viver acima das minhas possibilidades? Esquadrinhando despesa a
despesa e saltando convenientemente a linha que continha a palavra tabaco e que
até pusera em pé-de-página com letra de apólice de seguro, apercebi-me que, de
facto, uma determinada área da minha vida saltava à vista desarmada, em letras
grandes e florescentes, como problemática: o almoço.
Almoçar
fora todos os dias gastando uma média de 8 € era sem dúvida viver acima das
minhas possibilidades, e como não queria mais sentir-me incluída nos tais
sermões, mudei radicalmente a minha vida, como aquelas mentes que se iluminam
pelos discursos inflamados de homens vulgares erigidos a profetas glorificando
os seus livros de auto-ajuda agora no topo das vendas das livrarias.
Sendo
funcionária pública, retomei o antigo hábito de quando a idade era boa por ser
pouca mas rimava com dificuldade: ir à cantina. Nós dizemos ir à cantina, mas
na verdade, o nome oficial é refeitório. Palavra comprida demais para frases
que se querem curtas no aperto dos horários e cantina até lembra escola.
Aqui
perto há dois lugares à escolha, um mais “chique” do que o outro, mas o preço
por uma refeição completa é o mesmo, menos de metade do que pagava apenas por
um prato!
Um
deles é enorme, provavelmente antiga garagem transformada em cantina. Permite
um almoço mais sossegado e tem uma outra vantagem: as mesas são para quatro
pessoas e as cadeiras, surpresa das surpresas, são uma espécie de baloiços. Não
sei descrever à moda de manual técnico, mas em termos simples, são giratórias.
Como se fosse um parque infantil à mesa do almoço, uma espécie de presente para
os mais velhos, com um certo sabor a brincadeira proibida, lembrando os dias em
que seus pais lhes chamavam a atenção “está quieto com a cadeira!”.
Aqui
são mais os reformados que vêm, alguns desde muito cedo, sentando-se na sala de
entrada à espera de serem os primeiros da fila e adoram ter motivos para chamar
a atenção de quem acham que lhes está a passar à frente.
Na
cantina chique, mais pequena, as mesas são corridas, há mais gente e, embora
também seja frequentada por velhinhos, os mais novos estão aqui em grande
número, pelo que o barulho é a condizer.
Antes
de ordeira e pacientemente ir para a fila do self-service, compram-se as
refeições em máquinas muito evoluídas, com ecrã táctil e uma voz de senhora num
metálico irritante a dar ordens: insira o seu cartão, não retire o seu cartão,
efectue o pagamento, retire o cartão, retire o troco, retire o recibo. Na
cantina grande, as máquinas até têm arrumador. Um senhor que ajuda quem se
atrapalha com a máquina diabólica esperando que lhe caia em sorte ou bondade
uma moeda.
As
funcionárias adoram ser cúmplices e sugerem o que devemos comer com acenos de
cabeça, um piscar de olhos ou uma deixa apropriada.
Há
os velhinhos que vêm em grupo, normalmente mulheres, antigas professoras
aposto, muito bem arranjadas, às vezes até de casacos de peles e maquilhadas,
sobretudo muito conversadeiras. Há os que vêm sozinhos e descobrem os outros, e
os que vêm sozinhos e não querem mesmo ser descobertos.
Os
que vêm de bengala ou canadianas são ajudados pelas funcionárias que lhes levam
o tabuleiro até á mesa.
Há
quem ache que tem aquele lugar reservado e se sente no lugar ao lado refilando
entre dentes o tempo todo, em tentativa de reconquista do lugar adorado pela
força da indignação expressa em palavras sussurradas.
Há,
descobri hoje quando um senhor desmaiou, muita solidariedade e um conhecimento
mútuo mas calado.
A
cantina parece um outro mundo, paralelo, com passagem secreta atrás de portas
discretas, mas é o nosso mundo. O meu e o vosso.
Deprimente?
Nem tanto. É a vida.
Leonor
Martins de Carvalho
Publicada
em 17/02/12 no
Sem comentários:
Enviar um comentário