segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Dia 103 – De memórias II

Do bojo da carteira nem sempre saem temas surpreendentes. Muitas vezes, ao contrário do que ela pensa, são mais do que previsíveis.

Penso que já falei de memórias. É raríssimo reler o que escrevi e tenho medo de me repetir, mas sempre que regresso às raízes saltam as memórias para o colo, trepam peito acima e, não sei porquê, teimam acintosamente em alcançar os olhos (só pode mesmo ser de propósito) para que se afoguem em lágrimas. Estranhamente, as memórias nadam e sobrevivem.

Ninguém nos ensina a guardar memórias. Instalam-se sem pedir licença. Há quem tudo faça por apagá-las. De nada vale. Estão lá, queiramos ou não. As más e as boas. As más, contamos a poucos e algumas ensinam-nos a crescer. As boas, desejamos que todos as tenham iguais.

Sei bem que os filhos terão as suas memórias mas gostava tanto que fossem meros acrescentos das nossas… Talvez nos compreendessem melhor, quando perante uma paisagem, uma luz, um som, um cheiro, nos vêem paralisados, de sorriso pronto, um ar pateta...

Como explicar as cores, cheiros, sons e gestos que nos transportam até a um outro tempo, feliz ou menos feliz? Algumas memórias ainda poderão ter remédio, para outras é demasiado tarde. Mesmo com inusitados esforços só conseguimos partilhar algumas e muitas desapareceram na voracidade das regulamentações enviadas com selo de Bruxelas.

Desapareceram aqui os gestos e cheiros da minha infância. Se quisesse o seu retorno, tinha de me ver com as regras higiénicas europeias, inodoras e incolores. Mas um dia ainda poderei revivê-las. Como os cheiros da queijaria. Os gestos. Sentir os dedos a mergulhar naquela massa branca tão macia extorquindo-lhe o soro e moldá-la ao cincho. O cheiro da massa do pão. Dos gestos violentos a amassá-la, acabando numa simples bênção de cruz rematada a frase condizente. Da vassoura de giestas a varrer o forno, quente da carqueja. Da espera. O aprender a esperar. O cheiro do pão quando se tira a porta do forno.

O gesto de migar as couves para as galinhas. O chamá-las ao repasto. Os cheiros do fumeiro. Provocar os perus. Os cheiros da adega. Os gestos rigorosos para, numa horta, tapar com a enxada um rego no minuto exacto e dar entrada à água noutro. Os badalos e chocalhos ao longe. Cavalgar como se fosse dona do vento.

As memórias perdidas. O tempo exacto de regular o candeeiro a petróleo para não queimar a chaminé. O cheiro das velas que levávamos para o quarto. O som das nossas vozes ao serão. O som das conversas fascinantes dos tios e os seus desenhos deslumbrantes. O som do silêncio quando, concentrados, tentávamos agradar à avó mostrando que também sabíamos desenhar. O som das cartas da paciência da avó. O som dos seus passos subindo a escada para ver se não tínhamos velas acesas. O som do telefone que o tio-avô inventou para ligar as quintas entre si, em códigos Morse diferentes. Três traços. É para nós! O gongo gigante que à falta de sino, marcava as horas de descanso e de trabalho. O gongo pequenino de casa para chamar às refeições, que a avó levava até à varanda. Raramente o ouvia, tão longe estava, e os atrasos pagavam-se.

Estas e muitas mais, recuperáveis ou perdidas, guardo-as em caixa de música que toca sem avisar.

Inesperadamente herdei também as memórias dos nossos que cruzaram os mares, conheço os sons, cores e cheiros sentidos pelos que aportaram em sítios onde nunca fui. Sei que os reconheço. Sei que vou chorar na sua presença porque os sinto meus.


Leonor Martins de Carvalho

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Dia 2 - Dos políticos

Até podia aproveitar a maré das efemérides desta semana para uma alfinetada monárquica. Contudo, tal como os nossos antepassados aprenderam a navegar à bolina para chegar a bom porto, decidi ir contra o vento. Afinal nem tinha outra hipótese, pois nesta carteira, gémea de todas as outras, o aleatório é quase comandante. Nunca se encontra o que se quer e sai sempre o inesperado.

Parafraseando os saudosos Monty Python, passemos então a algo completamente diferente: “os políticos”. Queixamo-nos todos os dias dos políticos em geral e de muitos em particular. Que fazer? Haverá solução? Será que ligeiras alterações à sua carreira fariam alguma diferença? É mesmo o que proponho, ligeiríssimas alterações.

Todos os aspirantes a uma carreira na política, seriam obrigados a passar por uma série de provas. À moda dos Jogos sem Fronteiras, lembram-se? Para que o povo conhecesse bem os futuros políticos, as provas seriam televisionadas e apresentadas pelo Eládio Clímaco, que tem a experiência requerida.

Deixo aqui dois singelos exemplos:

1. Viver um mês numa aldeia isolada.
Pode ser em Trás-os-Montes, Beiras ou Alentejo, tanto faz.
A preferência seria por uma aldeia num vale recôndito, sem rede de telemóvel nem de Internet, nem sequer acesso à novíssima TDT. Ficariam a 20 km de outra aldeia e a 50 km da vila mais próxima, através de belíssimas estradas com curvas a cada 5 metros e com espaço suficiente para passar um Mini.
Os candidatos receberiam a reforma mínima, não tinham direito a automóvel e teriam de fazer a vida de uma família normal: ir para o trabalho, às compras, ao médico, à escola, à Câmara, ao tribunal (antes ainda do novo mapa judiciário).
O júri era constituído por habitantes locais com fama de incorruptíveis, que se encarregavam de verificar se não havia batotas.

2. Viver em ambiente urbano sem automóvel, num qualquer subúrbio de Lisboa.
Pode ser Seixal, Stª Iria de Azóia ou Algueirão, tanto faz.
Nesta prova, com o pecúlio aumentado para o salário mínimo, teriam de descobrir que tipo de passe comprar, as ligações e transbordos necessários, e depois ir para e voltar do trabalho à hora de ponta, bem como efectuar percursos em horário nocturno e em fim-de-semana.
Também aqui se poderia recorrer a habitantes locais como jurados, mas um concurso para voluntários controladores não era má ideia, desde que fossem revistados antes, para evitar vinganças privadas.

Os sobreviventes a estas provas e mais algumas outras, elaborariam a final um relatório, que, para testar a sua capacidade de síntese, não poderia exceder uma folha A4, com as suas impressões, pontos fortes e fracos e currículo completo, anexando carta de motivação, sobre o tema “Ser político é servir”. Esta seria a base da entrevista, onde seriam testados ao limite, ligados a um polígrafo.

Talvez assim os futuros políticos consigam perceber a diferença entre o mapa no gabinete e a vida real. Talvez assim, cada vez que tomam decisões, se lembrem das pessoas. Talvez assim conheçam o povo, o ouçam, nas suas queixas e nas suas histórias, e aprendam o que é solidariedade.

Acredito que as provas tornariam os futuros políticos melhores pessoas e por isso melhores políticos. Caso contrário, seriam casos perdidos, que deviam ser banidos de cargos públicos ou exportados para melhorar a balança comercial. Não muito, porque o seu valor é baixo.

Leonor Martins de Carvalho

Publicada a 03/02/2012 no Eternas Saudades do Futuro


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Dia 102 - Da vingança das Letras

A carteira julga-se cientista no meio de um doutoramento, esquecendo-se convenientemente de ainda não ter acabado o liceu. Impinge-nos, pois, a sua nova teoria: a vingança das letras. Das letras más.

Parece que é uma maldição por fases. Basta olhar para os jornais para ver que agora estamos na fase da letra B.

BPN, BPP, BES, BdP, BCE, ocasionalmente intercalados com Benfica ou Bombardeamentos. Pelos vistos, Ébola também conta, bem como Avião e Governo, por causa de alguns sotaques. Com estas excepções, não sei se a tese é lá muito sólida, mas a carteira teima.

A dita série amaldiçoada não segue qualquer ordem, muito menos a alfabética. Não começou no A nem se lhe segue o C. É uma série caótica, sem qualquer possibilidade de transcrição em fórmulas matemáticas, gerada aleatoriamente nos casos terríveis que dominam o mundo, um mundo, diz ela, subjugado pelas letras.

Perguntei se alguma vez havia uma qualquer influência positiva nessa tal série vingativa e se palavras como Bem ou Belo poderiam entrar na sua composição. Explicou que fazem parte da maldição mas, porque são sempre minoritárias, não conseguem desviar a rota.

A ser assim, e pensando só em Portugal, posso juntar-lhe ainda Barbárie, Bestas, Burlas e Vergonha (a pensar nos tais sotaques).

Não vamos sair do Buraco tão cedo, por isso o reino dos Bês ainda nos vai acompanhar. Vou pedir que me avise quando chegar a maldição do G, porque quero muito falar de ganância, ou do C, de compadrio e corrupção.

Pode ser também que um dia chegue a vez da vingança das letras Boas.


Leonor Martins de Carvalho