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domingo, 9 de novembro de 2014

Dia 104 – Do asco

Bem tentou a carteira impedir-me por todos os meios de escrever esta crónica. Usou de argumentação científica, literária, abusou de golpes baixos, enfim, o costume. Que já todos escreveram sobre o mesmo, que é repetitivo, que nunca terás a força de um verdadeiro escritor, que não conseguirás atingir as almas.

Não sei. Não quero saber. Sai-me das entranhas, esta. Das más. Aquelas que nos viram as tripas. Que nos nauseiam e nos tiram o sono. A alguns, claro, e tenho a pouca sorte de ser um deles. Deixei de ver televisão, mas sempre me chegam notícias pela Internet e sinto asco, asco e mais asco. As náuseas que não tive na gravidez. Deve ser castigo.

Há anos que vemos, lemos e sabemos das promíscuas vizinhanças, ou melhor, da partilha de cama e mesa (com roupa lavada) entre poderes económicos e políticos e das amancebações (não existe a palavra, paciência, inventei) com empresas de advogados. Sem pudores nem remorsos.

Tudo tem um preço e cada vez mais baixo. Não existe país, não existe Nação, não existe Língua, existe uma oportunidade de negócio. A prostituição de uma Pátria. Vendem-se os pais, os avós, a língua, a terra, o património, a História a troco de um passaporte, um prato de lentilhas, um honoris causa, uma condecoração.

Honras a quem traiu, vendeu, sabujou, calou. Calúnias a quem resiste. Chegamos a pensar que estamos sós, que estamos doidos, apontam-nos como ultrapassados por não percebermos a utilidade (traduza-se por dinheiro nos bolsos) da coisa. Estranham não cedermos ao marketing bem delineado da pertença a um qualquer suposto bem maior.

Roubar, mentir, vender-se, vender outrem, vender património ao deus-dará, delapidá-lo, descaracterizá-lo, cometer genocídio de todos quantos vivem fora do centro do poder, passaram a ser os mandamentos deste mundo a que não quero pertencer.

O asco não se resume a este canto. É vírus bem mais potente que qualquer Ébola. Assistimos a igual ou parecido (embora pareça sempre pior aqui, porque nem a justiça funciona) por todo o Mundo.

A guerra, a corrupção, a violência, a violência gratuita, os negócios com a guerra, os negócios com as riquezas das Nações dos outros, as perseguições, os abjectos usos de crianças nas podridões de sociedades sem consciência.

Passei a vida a dizer à filha “com o mal dos outros posso eu bem”, ou “se X se atirasse a um poço também se atirava?”… a propósito do eterno argumento infantil de que os outros também fazem, ou podem, ou fosse o que fosse. Mantenho o argumento. Gosto de dormir tranquila. Infelizmente, dormir tranquilo, para muitos, é dormir abraçadinho à ganância e tomar o pequeno-almoço com ela, porque pagou.

Assusta. Conseguimos antever um futuro, não o que desejámos, mas o imposto por obscuros tempos. Uma coutada de alguém. Em rigor, negamos, mas até já somos.

Pensei em fugir. Ir para outro canto, bem longe. Mas este canto é também meu, foi dos meus, herdei deles uma visão muito própria do que somos. Porque hei-de fugir? Porque não ficar e resistir? Porque não acreditar que somos mais do que marionetas?

O melhor comprimido para a náusea provocada pelo asco são os pequenos momentos, no dia-a-dia, que nos fazem acreditar haver ainda gente boa e sã, apesar da visão diariamente imposta de inúmeras montanhas que nos atrofiam e nos parecem inultrapassáveis.

Nem que seja por um. Portugal tem oitocentos e setenta e um anos. Só precisa de quem o continue a amar. Um amor vindo das entranhas. Das boas.


Leonor Martins de Carvalho

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Dia 103 – De memórias II

Do bojo da carteira nem sempre saem temas surpreendentes. Muitas vezes, ao contrário do que ela pensa, são mais do que previsíveis.

Penso que já falei de memórias. É raríssimo reler o que escrevi e tenho medo de me repetir, mas sempre que regresso às raízes saltam as memórias para o colo, trepam peito acima e, não sei porquê, teimam acintosamente em alcançar os olhos (só pode mesmo ser de propósito) para que se afoguem em lágrimas. Estranhamente, as memórias nadam e sobrevivem.

Ninguém nos ensina a guardar memórias. Instalam-se sem pedir licença. Há quem tudo faça por apagá-las. De nada vale. Estão lá, queiramos ou não. As más e as boas. As más, contamos a poucos e algumas ensinam-nos a crescer. As boas, desejamos que todos as tenham iguais.

Sei bem que os filhos terão as suas memórias mas gostava tanto que fossem meros acrescentos das nossas… Talvez nos compreendessem melhor, quando perante uma paisagem, uma luz, um som, um cheiro, nos vêem paralisados, de sorriso pronto, um ar pateta...

Como explicar as cores, cheiros, sons e gestos que nos transportam até a um outro tempo, feliz ou menos feliz? Algumas memórias ainda poderão ter remédio, para outras é demasiado tarde. Mesmo com inusitados esforços só conseguimos partilhar algumas e muitas desapareceram na voracidade das regulamentações enviadas com selo de Bruxelas.

Desapareceram aqui os gestos e cheiros da minha infância. Se quisesse o seu retorno, tinha de me ver com as regras higiénicas europeias, inodoras e incolores. Mas um dia ainda poderei revivê-las. Como os cheiros da queijaria. Os gestos. Sentir os dedos a mergulhar naquela massa branca tão macia extorquindo-lhe o soro e moldá-la ao cincho. O cheiro da massa do pão. Dos gestos violentos a amassá-la, acabando numa simples bênção de cruz rematada a frase condizente. Da vassoura de giestas a varrer o forno, quente da carqueja. Da espera. O aprender a esperar. O cheiro do pão quando se tira a porta do forno.

O gesto de migar as couves para as galinhas. O chamá-las ao repasto. Os cheiros do fumeiro. Provocar os perus. Os cheiros da adega. Os gestos rigorosos para, numa horta, tapar com a enxada um rego no minuto exacto e dar entrada à água noutro. Os badalos e chocalhos ao longe. Cavalgar como se fosse dona do vento.

As memórias perdidas. O tempo exacto de regular o candeeiro a petróleo para não queimar a chaminé. O cheiro das velas que levávamos para o quarto. O som das nossas vozes ao serão. O som das conversas fascinantes dos tios e os seus desenhos deslumbrantes. O som do silêncio quando, concentrados, tentávamos agradar à avó mostrando que também sabíamos desenhar. O som das cartas da paciência da avó. O som dos seus passos subindo a escada para ver se não tínhamos velas acesas. O som do telefone que o tio-avô inventou para ligar as quintas entre si, em códigos Morse diferentes. Três traços. É para nós! O gongo gigante que à falta de sino, marcava as horas de descanso e de trabalho. O gongo pequenino de casa para chamar às refeições, que a avó levava até à varanda. Raramente o ouvia, tão longe estava, e os atrasos pagavam-se.

Estas e muitas mais, recuperáveis ou perdidas, guardo-as em caixa de música que toca sem avisar.

Inesperadamente herdei também as memórias dos nossos que cruzaram os mares, conheço os sons, cores e cheiros sentidos pelos que aportaram em sítios onde nunca fui. Sei que os reconheço. Sei que vou chorar na sua presença porque os sinto meus.


Leonor Martins de Carvalho

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Dia 102 - Da vingança das Letras

A carteira julga-se cientista no meio de um doutoramento, esquecendo-se convenientemente de ainda não ter acabado o liceu. Impinge-nos, pois, a sua nova teoria: a vingança das letras. Das letras más.

Parece que é uma maldição por fases. Basta olhar para os jornais para ver que agora estamos na fase da letra B.

BPN, BPP, BES, BdP, BCE, ocasionalmente intercalados com Benfica ou Bombardeamentos. Pelos vistos, Ébola também conta, bem como Avião e Governo, por causa de alguns sotaques. Com estas excepções, não sei se a tese é lá muito sólida, mas a carteira teima.

A dita série amaldiçoada não segue qualquer ordem, muito menos a alfabética. Não começou no A nem se lhe segue o C. É uma série caótica, sem qualquer possibilidade de transcrição em fórmulas matemáticas, gerada aleatoriamente nos casos terríveis que dominam o mundo, um mundo, diz ela, subjugado pelas letras.

Perguntei se alguma vez havia uma qualquer influência positiva nessa tal série vingativa e se palavras como Bem ou Belo poderiam entrar na sua composição. Explicou que fazem parte da maldição mas, porque são sempre minoritárias, não conseguem desviar a rota.

A ser assim, e pensando só em Portugal, posso juntar-lhe ainda Barbárie, Bestas, Burlas e Vergonha (a pensar nos tais sotaques).

Não vamos sair do Buraco tão cedo, por isso o reino dos Bês ainda nos vai acompanhar. Vou pedir que me avise quando chegar a maldição do G, porque quero muito falar de ganância, ou do C, de compadrio e corrupção.

Pode ser também que um dia chegue a vez da vingança das letras Boas.


Leonor Martins de Carvalho

terça-feira, 29 de julho de 2014

Dia 101 - De recomeços

Recomeçar é verbo prometedor. Sabe a força. Cheira a novo.

Embora haja quem diga ter medo de recomeços, na verdade, mesmo quase sem dar por isso, usamos e abusamos das suas versões ao longo das nossas vidas, todos os anos, todos os meses, todos os dias ou até várias vezes num mesmo dia.

Garante da sobrevivência, recomeçamos sempre que a vida nos dá estaladas. Recomeçamos sempre que caímos. Recomeçamos acompanhados. Recomeçamos sem ninguém ao lado. Recomeçamos a cada filho. Recomeçamos sempre que a vida nos dá outro olhar.

Cada acordar é um recomeço. Cada espelho é um recomeço. Cada livro é um recomeço. Cada mudança de óculos é um recomeço. Cada minuto em frente a algumas pessoas tem mesmo de ser um recomeço, que segure com trela a vontade de lhes pregar uma valente sova.

Esta carteira está tão próxima da espécie humana quanto lhe permite a sua sede de assimilação. Fechou-se (comprou até cadeado na loja do chinês!) quando chegou aos cem títulos em blogue alheio. Grata ao João Marchante mas exausta. Faltava-lhe o treino naqueles hábitos saudáveis que tanto apregoam por aí.

Após reflexão profunda, tanta quanto o seu volumoso bojo, decidiu-se então pelo recomeço, arrombou o cadeado e mudou-se de armas e bagagens para apartamento próprio (é arrendado, mas agradeço que não lhe digam).

Neste andar de duas assoalhadas, convivem antigas crónicas e arremedos de novas, agora sem horários fixos. Não consegui inculcar-lhe os tais hábitos...

Deixamos o ego quoque para o que sempre foi. O cantinho.

Se este recomeço não parece tão prometedor quanto o verbo, no futuro vai tentar sê-lo, tanto mais que de promessas vãs está a carteira cheia e por isso nunca encontro nela o tema das crónicas.

Já agora, pedia o pequeníssimo favor ao país para aprender a recomeçar.


Leonor Martins de Carvalho